O INSUBSTITUÍVEL

Ei, Andre. Tudo bem?
Vim te contar que sua mensagem foi recebida! 

Pode ter certeza de que sua solicitação será lida por um ser humano que estará totalmente à disposição para te ajudar. (…)

Basta aguardar e entraremos em contato.

Recebi as linhas acima em meu e-mail após fazer uma solicitação para uma das plataformas para as quais produzo conteúdos voltados para concursos. A primeira leitura do trecho que destaquei, por um momento, causou-me franzimento de testa e certa estranheza, embora, no instante seguinte, meu cérebro tenha me lembrado de algo como “deve ser apenas por que você tem mais de 30 anos, cara”. Porém, eu o rebati: “será?”

Seja como for, o insólito da mensagem me fez pensar sobre o quanto as tecnologias digitais, inteligências artificiais e outros “bichos” se inseriram na nossa realidade e, cada dia mais um pouco, vão ampliando suas ações – seu domínio, quiçá – sobre o cotidiano desse mesmo ser humano (e de todos os demais!) citado pela IA em sua eloquente missiva, seja ele um (uma) Baby Boomer, um (a) Geração X, um (a) Millennial, um (a) Geração Z ou ainda (e principalmente!) os (as) “recém-chegados” Alfas.

Ainda sobre a eloquência da IA, é impossível não se perceber as influências das tecnologias na forma como os estudantes de quaisquer segmentos, hoje, encaram o aprendizado. Não se concebe mais o ensino sem a presença das tecnologias digitais, sob pena de o ambiente escolar se tornar uma espécie de “universo paralelo” para todos os que, de uma forma ou de outra, convivem diuturnamente com informações em tempo real, comunicação intensa por meios digitais online, conteúdos instantâneos e apressados ao melhor estilo “cinco minutos atrás é um passado longínquo”, milhares de abas abertas no navegador da internet, etc. Sim, o ser humano é, na terceira década do século XXI, multifocal como jamais foi em sua história, e a tendência natural é que seu consumo de informações seja sempre mais multicanais, mais multiplataformas, mais on demand e que seu aprendizado se horizontalize mais e mais. É claro como a luz do sol que não entender isso fará o educador / educadora estar em dissonância incompatível com seu público.

Até aqui, muitos dos meus leitores podem estar se perguntando: “e daí?”. Muito bem, vamos ao “e daí”: o “problema” é que esse hibridismo contemporâneo, essa simbiose inexorável, esse novo universo tão efervescente e iluminado escondem uma espécie de buraco negro com sua singularidade ímpar – a (ainda) impossível substituição da leitura tradicional e sua incomparável contribuição para o desenvolvimento cognitivo do ser humano. Com efeito, a compreensão, apreensão e interpretação de fatos, circunstâncias e opiniões, o poder de síntese ou ampliação, a aptidão para inferir e deduzir, a faculdade de perceber intertextualidades, a habilidade de enxergar o mundo e a vida por uma perspectiva distinta da sua própria e a capacidade de acompanhar acontecimentos levando-se em consideração outros pontos de vista (ainda) se aprendem e se expandem por meio da leitura.

É nesse contexto, nobre leitor/leitora, que o objetivo do meu texto vai ao encontro de uma espécie de “utilidade pública”. Muitos alunos e alunas me dizem que as provas de Língua Portuguesa e Redação estão ficando mais difíceis e complexas, seja o pré-vestibulando ou o concurseiro que busca uma vaga no serviço público. Será mesmo? Com efeito, sabedoras de tudo isso que você leu até aqui, ao longo dos últimos anos as bancas de concursos públicos civis e militares – de todos os níveis de escolaridade – e também as de vestibulares têm apresentado suas questões de Língua Portuguesa baseadas em textos cuja complexidade de leitura varia bastante; não raro, as provas optam por usar textos de gêneros distintos, literários e não literários, exigindo dos candidatos certa profundidade intelectual e foco de concentração durante todo o tempo disponível para a resolução da prova, levando muitos a considerarem a prova “difícil e trabalhosa”.

Bem, aqui vai uma notícia cuja tarefa de julgar se boa ou ruim, feliz ou infeliz será sua, leitor/leitora: a tendência é só “piorar”. Isso porque o hábito de ler vem diminuindo desde a virada do milênio.

Ao longo de quase 20 anos – trabalho com concursos desde 2004 –, vi a progressiva corrosão da capacidade de leitura por significativa parte dos alunos-candidatos. À medida que os anos foram-se sucedendo, meus alunos e alunas demonstravam cada vez menos capacidade de fazer inferências, interpretações e deduções; ano a ano menos capacidade de ver as relações simples de coesão textual, e, acima de tudo, a noção do que é argumentar consistentemente foi gradualmente se esmaecendo. Lembro-me nitidamente também que, neste mesmo recorte temporal, diversos colegas de outras áreas não exatamente correlatas – do direito às exatas – diziam que seus alunos (que também eram meus) não entendiam os enunciados e comandos de questões e, por conseguinte, não conseguiam resolvê-las; possuíam o conhecimento matemático, físico, químico ou legislativo, mas não acertavam a resposta por não conseguir “decifrar” o que lhes era solicitado. No caso de questões discursivas e redações, o índice de incompreensão mostrou-se exponencialmente maior.

Além de minha própria observação nas salas de aula, Maryanne Wolf, neurocientista cognitiva e professora titular da Universidade da Califórnia (UCLA), em seu livro O Cérebro no Mundo Digital: Os Desafios da Leitura em Nossa Era (ao qual recomendo que você leia, em especial se trabalha com educação), comprova que as pessoas desse novo milênio, que tiveram contato com os meios de comunicação digital ainda muito jovens, e, em especial, as nascidas a partir de 1997 (Gerações Z e Alfa que saíram e saem “do colo para os computadores de colo”) têm diminuídas a capacidade de abstração mental e concentração, e pouquíssima paciência para tudo aquilo que não tenha conteúdo rápido e de “fácil digestão” e que não esteja em uma tela. Em resumo, fazem qualquer coisa e muita coisa, mas não leem de forma tradicional e muito menos praticam a leitura profunda, analítica. Maryanne concluiu isso após extensa pesquisa ao longo de mais de uma década.

Embora as telas de computadores, tablets, notebooks e smartphones sejam ferramentas importantes para o nosso cotidiano e até auxiliem na própria leitura, elas (ainda) são apenas ferramentas. Se o objetivo é admirar uma bela escultura, não se pode ficar embevecido com a esteca; o pincel não estará na exposição, mas o quadro; assim como não se degusta a panela.

Meu leitor, minha leitora, a mensagem que quero efetivamente passar é: cultive o hábito da leitura. Ele é insubstituível. Para vencer quaisquer provas que pretenda fazer, não há alternativa melhor, não há outro caminho. A leitura, quanto mais profunda, mais ajuda a construir conceitos, faz florescer o pensamento crítico; saber ler ou não saber ler (e aqui não se trata de letramento!) põe em lados opostos massa de manobra e sociedade consciente, opinião própria e mantra da manada, escravidão e liberdade.

Eu sei disso.

As bancas de concursos sabem disso.

Agora você também sabe.

Bora ler?

Um forte abraço!

Prof. Andre Ben Noach
profandrebennoach@gmail.com

Publicado por profandrebennoach

Professor de Língua Portuguesa, Produção Textual (Redação Oficial e Argumentativa) e Literaturas de Língua Portuguesa, é especialista em História da Literatura. Trabalha há mais de 15 anos preparando candidatos para provas de concursos públicos civis, militares e vestibulares. Escritor de ficção, materiais didáticos e de preparação para concursos de todos os níveis. Andre Ben Noach é casado e é pai de um filho.

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